quarta-feira, agosto 05, 2015

A Ordem Burguesa

António Sardinha (1887 - 1925)


Na instabilidade permanente da nossa vida pública, não é dos homens que nós nos devemos queixar. Falta-nos um poder central que não dependa dos favores da opinião e que, no título indiscutível da sua legitimidade, tenha consigo todo o prestígio de uma autoridade voluntariamente aceite. Por mais que as ideologias republicanas persistam em afirmar o contrário, em Portugal a democracia está nos paroxismos finais, como de resto, em toda a parte. Se uma ideia se revela e afere pelas vantagens em que se confirma e realiza, não são outras as conclusões da terrível experiência social que representa para o mundo a guerra europeia. No seu último discurso Lloyd George claramente manifesta a sua inquietação. E se as democracias externamente se nos desmascaram como incapazes duma acção militar eficaz, também de há muito a sua impossibilidade para a solução dos problemas económicos se encontra mais que demonstrada. 

Quem diz «democracia» diz «individualismo». Quem diz «individualismo» diz por sua vez «burguesia» e «capitalismo». Na pavorosa confusão mental de que a Europa é vítima há mais de um século, acredita-se ainda que a Revolução Francesa, porque proclamou os Imortais Princípios, abriu às classes pobres uma era nova de emancipação e prosperidade. Se a superstição liberalista não falasse tanto à sentimentalidade das massas, com certeza que não se teria ido tão longe num ludíbrio que encobre a maior das falsidades. Se hoje existe, e em grau tão agudo, uma questão irredutível entre o rico e o pobre, entre o que produz e o que consome, a culpa é precisamente da metafísica mentirosa da Revolução. A Revolução só deu acesso a arrivistas cobiçosos de oiro e de domínio, a quem faltava a preparação moral da antiga sociedade. 
 
A antiga sociedade fundamentava-se no Sangue e no Trabalho, na Família e na Corporação. A Corporação e a Família eram assim as bases dum acordo permanente das classes, identificadas pelo seu interesse comum com o interesse próprio duma dinastia. Tudo se subverteu, porém, na hora em que pôde mais a oratória duma turba anónima de agitadores. E, de então para cá, correndo sempre atrás de uma miragem que nunca mais se alcança, os homens dividem-se furiosamente na demanda dessa fraternidade por que tanto suspiram, mas da qual cada vez se afastam mais. 
 
Não há dúvida que nos achamos em frente de uma demorada e dolorosa crise. As reivindicações das camadas operárias crescem ameaçadoras, enegrecendo de apreensões o horizonte já carregado das incertezas mais sombrias. Apregoa-se, vai em século e meio, a soberania do povo e só descobrimos ocupando-lhe o lugar o capitalismo mais desaforado e mais omnipotente. É o oiro quem manda desbragadamente. Manda a agiotagem como nunca. Reina a bancocracia. Um feudalismo pior que o outro, visto não conhecer nenhuma limitação de natureza espiritual nem resultar das necessidades históricas de sociedade, – um feudalismo, pior que o outro, escraviza a produção nas suas tenazes de ferro, ao mesmo tempo que entoa a ária estafada dos chamados Direitos do Homem. 
 
Há bem pouco ainda que Wilson saudava nos seus soldados os soldados da Liberdade. Soldados da Liberdade os soldados da mais descomunal das plutocracias que as gerações conhecem e conhecerão! Meditem nesta contradição evidente os que acreditam na sonoridade das grandes palavras e se deixam arrastar infantilmente pelo seu aparato de firma suspeita. Mais do que nunca a guerra europeia é a prova de que vivemos sobre um artifício que é preciso denunciar a todo o transe. Esse artifício é o sofisma democrático que impede o Trabalho de se organizar colectivamente e cria na dispersão do proletariado a sua fraqueza diante dos detentores despóticos do poder. Não é outra a claridade porque devemos encarar a situação do nosso país durante os acontecimentos que ultimamente paralisaram quase por completo a vida em Lisboa. 
 
A concepção de existência na democracia é materialista. Vem de Voltaire a sua herança filosófica e ninguém melhor a representa do que os aventureiros de 1830, com Thiers e Périer, gritando para os camaradas: - «Enrichissez-vous! Enrichissez-vous!» Deus ficara para os outros. Ficara para os outros, pelo muito que lhes haviam roubado, a lei antiga da honra que sujeitava as fortunas ao interesse da colectividade e que levantara, por isso mesmo, a Vendeia em defesa dos seus nobres, timbrando sempre em cumprir as suas obrigações de boas autoridades sociais. 
 
A Revolução desembaraçou, ao contrário, a propriedade de tais encargos, que eram seculares. E quem andar um pouco em dia com as coisas da história, verificará que, dos redentores de 89, os que escaparam à obra purificadora da guilhotina acabaram inevitavelmente príncipes do Império e ministros da Restauração. «Ouça cá, duque de Otranto! – dizia-me duma vez Robespierre». E nesta anedota célebre de Fouché está contido o parvenu que a Revolução elevou de um salto às culminâncias doiradas do poder. 
 
Ora as democracias, desenvolvendo por um lado o arrivismo e por outro o amor do lucro, colocam o Estado ao alcance dos ambiciosos que o souberem conquistar e segurar. Cria-se assim a ordem burguesa, bem caracterizada pela maneira sangrenta como se liquidam em democracia as convulsões populares. Luís XVI morreu no cadafalso porque recuou em frente do alvitre de mandar metralhar a canalha de Paris. Por outro tanto caiu nas jornadas de Julho a Realeza legítima. Já não acontece o mesmo na França republicana, com Clemenceau ordenando os massacres de Narbonne e de Davreuil, e na «livre América», com o milionário Carnegie, e autor do tal livro famoso, – A Democracia triunfante, fuzilando por conta própria os seus operários em greve. A ordem burguesa é, pois, a ordem que se defende no Estado unicamente por meio da força e que, não tendo consigo nem um passado nem um futuro, pratica, enquanto lhe é possível, a máxima de Guizot: - «Governar é aguentar-se no poder». 
 
Nós conhecemos a «ordem burguesa». Foi ela que resolveu, sem a resolver, a greve que traz isolada Lisboa do país inteiro e o país inteiro do resto do mundo. O governo, na sua intransigência, pretendeu proceder como governo. Mas para proceder como governo faltavam-lhe, e faltam-lhe, os apoios que só possui uma autoridade legítima. Nascido duma revolução, quis manter-se contra os resultados naturais dessa revolução. Não tinha em sua defesa mais amparos que os da resistência material. Não filosofo agora sobre uma evidência que os próprios factos se encarregam de descarnar bem cruamente. O que eu desejo é assinalar mais uma vez o fim próximo dos regimes democráticos. 
 
Esta guerra trouxe com ela uma revivescência espantosa de nacionalismos. Adite-se-lhe a pressão crescente das reivindicações operárias que já ninguém ilude na sua energia, de momento para momento mais forte e mais consciente. O sindicalismo é a forma social de amanhã. Voltam a aliar-se, deste modo, dois elementos eternos que a Revolução desprezou e de cujo, consorcio derivará a saúde da sociedade vindoura: - a Família e a Associação. 
 
São as democracias impotentes, por pecado original, para solucionar a crise que geraram com o seu advento. O duelo do Trabalho com o Capital testemunhado claramente. A liberdade política é um embuste com que se desvirtuam e sofismam as reclamações inadiáveis dos que produzem e nada conseguem. Não é de liberdade política que se trata. Trata-se mas é de liberdade económica. A liberdade económica, pela sua própria índole, é incompatível com os sistemas parlamentares, que importam, como, consequência, as oligarquias políticas e financeiras que atiraram a Europa para a guerra e nela a mantêm. É imperioso apear o Capital do seu poderio abusivo para o tornar um acessório dos dois factores que naturalmente o antecedem: - a Terra e a Produção. Exterminando a supremacia dos argentários e o cosmopolitismo da alta finança, a sociedade retomará, pela emancipação económica, o caminho perdido das antigas liberdades cujo segredo consistia somente num vigoroso espírito associativo. 
 
Mostram-se incapacitados de o conseguirem os regimes saídos da Revolução Francesa. Temos a prova ao alcance dos nossos olhos no espectáculo que Lisboa nos oferece. E se nos recolhermos um pouco a um exame mais vagaroso dos factos, o que se vê é que só as monarquias dispõem dessa admirável faculdade. Embora aristocrática em Roma, a república caiu pela sua impossibilidade orgânica em satisfazer as exigências justas da plebe. Por aí afora, até a actualidade, é sempre o princípio monárquico que triunfa na realização pacífica das reformas mais avançadas. Com a queda da Realeza tradicional, desapareceu o sistema corporativo. A tirania da livre concorrência surge com a liberdade tirânica das democracias. Os operários portugueses padecem e padecerão largamente os amargos indefinidos da maior das desilusões. «Oh, como a república era linda nos tempos do Império!» – dizia-se em França, depois dos primeiros desenganos. Podemos repeti-lo em Portugal. Mas repeti-lo não basta. O que é urgente é que desembaracemos a mentalidade do proletariado dos seus preconceitos anárquicos, lógicos em face da doutrina democrática, mas despidos de significado e valor em presença das realidades. 
 
A ordem republicana é a ordem burguesa. A ordem burguesa Guizot a definiu, ao exclamar que «governar era segurar-se a gente no poder». Não são precisos princípios. Para que diabo é que servem escrúpulos e preocupações, se a vida passa e o primeiro lugar é do que primeiro lhe deitar a mão? A moral laica gera assim naturalmente o utilitarismo. O utilitarismo por sua vez conclui em Bonnot e em Garníer, dois bandidos bem menos responsáveis e bem mais sinceros do que se imagina. 
 
Tal é a situação das democracias contemporâneas. Provocam conflitos que não resolvem, sufocando-os pela razão momentânea da metralha. Regimes contra a natureza, faliram na guerra como na paz. 
 
Incapazes de conduzirem externamente um esforço, militar ou diplomático, que seja contínuo e homogéneo, prejudicam no interior a unidade social num constante acirramento de facções e de antagonismos. A virtude das monarquias, pelo contrário, consiste em desviar para fora, em serviço duma aspiração de engrandecimento e riqueza, os fermentos internos de desagregação. Por isso como o passado foi seu, seu há-de ser também irrecusavelmente o futuro. O Estado guerreiro só é possível com o Rei, como só com o Rei é possível o Estado pacífico. Sobre essa certeza se repousa o Integralismo Lusitano que, sendo tradicionalista extreme na sua estrutura, encara sem temor o dia de amanhã, que na solução monárquica do Estado e na solução corporativa do Trabalho virá a encontrar o seu equilíbrio definitivo. 
 
As democracias terão já passado como passa um vento mau, não ficando mais delas senão o aproveitamento duma grande lição.


António Sardinha in «Durante a Fogueira», 1917

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