Cesário Verde
Lisboa 1855/02/25 - 1886/07/19 Portugal Realismo Eu que sou feio, sólido, leal, A ti, que és bela, frágil, assustada, Quero estimar-te, sempre, recatada Numa existência honesta, de cristal. Sentado à mesa de um café devasso, Ao avistar-te, há pouco fraca e loura, Nesta babel tão velha e corruptora, Tive tenções de oferecer-te o braço. E, quando socorrestes um miserável, Eu, que bebia cálices de absinto, Mandei ir a garrafa, porque sinto Que me tornas prestante, bom, sudável. «Ela aí vem!» disse eu para os demais; E pus me a olhar, vexado e suspirando, O teu corpo que pulsa, alegre e brando, Na frescura dos linhos matinais. Via-te pela porta envidraçada; E invejava, - talvez que não o suspeites! - Esse vestido simples, sem enfeites, Nessa cintura tenra, imaculada. Soberbo dia! Impunha-me respeito A limpidez do teu semblante grego; E uma família, um ninho de sossego, Desejava beijar o teu peito. Com elegância e sem ostentação, Atravessavas branca, esbelta e fina, Uma chusma de padres de batina, E de altos funcionários da nação. «Mas se a atropela o povo turbulento! Se fosse, por acaso, ali pisada!» De repente, parastes embaraçada Ao pé de um numeroso ajuntamento, E eu, que urdia estes frágeis esbocetos, Julguei ver, com a vista de poeta, Um pombinha tímida e quieta Num bando ameaçador de corvos pretos. E foi, então que eu, homem varonil, Quis dedicar-te a minha pobre vida, A ti, que és ténue, dócil, recolhida, Eu, que sou hábil, prático, viril.
Naquele «pic-nic» de burguesas, Houve uma coisa simplesmente bela, E que, sem ter história nem grandezas, Em todo o caso dava uma aguarela. Foi quando tu, descendo do burrico, Foste colher, sem imposturas tolas, A um granzoal azul de grão-de-bico Um ramalhete rubro de papoulas. Pouco depois, em cima duns penhascos, Nós acampámos, inda o sol se via; E houve talhadas de melão, damascos, E pão de ló molhado em malvasia. Mas, todo púrpuro, a sair da renda Dos teus dois seios como duas rolas, Era o supremo encanto da merenda O ramalhete rubro das papoulas.
E evoco, então, as crónicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu não verei jamais! E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! De um couraçado inglês vogam os escaleres; E em terra num tinido de louças e talheres Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. Num trem de praça arengam dois dentistas; Um trôpego arlequim braceja numas andas; Os querubins do lar flutuam nas varandas; Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! Vazam-se os arsenais e as oficinas; Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras; E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas. Vêm sacudindo as ancas opulentas! Seus troncos varonis recordam-me pilastras; E algumas, à cabeça, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas. Descalças! Nas descargas de carvão, Desde manhã à noite, a bordo das fragatas; E apinham-se num bairro aonde miam gatas, E o peixe podre gera os focos de infecção!
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