
Há gente que veio da esquerda e virou à direita, outra que ia pela direita e estacionou à esquerda. Contam todos mais de 60 anos, muitos preferem não falar do assunto, outros optam por pintar esse retrato do passado com cores de normalidade. A verdade é que nas últimas décadas não há registo de grandes mudanças no espetro político português, enquanto (paradoxalmente) se multiplicam as opiniões divergentes no seio dos partidos à velocidade da rede e dos media.
"Isso tem a ver com as chamadas falhas tectónicas. Historicamente há momentos em que há terramotos, momentos de imensa viragem, e há os outros, no planalto, de espera agoniante e agoniada por algo que vai acontecer". É assim que José Magalhães justifica a ausência de desfiliações partidárias como aquela que protagonizou, nos idos de 90, quando saiu do Partido Comunista Português. A imagem do terramoto foi buscá-la à Lisboa de 1755, que provocou "um sobressalto na intelectualidade europeia, e uma enorme oportunidade para o racionalismo voltairiano". Uma das réplicas aconteceu muito tempo depois : "entre a queda da cadeira de Salazar e o 25 de Abril, foi um desses períodos - de agonia. Muita gente não viveu isso, morreu, antes do desvendar do que estava além da curva. E é obvio que o período compreendido entre o arranque da perestroika soviética e a queda do muro de Berlim foi um período de terramoto", disse ao DN o antigo governante, que nas últimas eleições não chegou a ser eleito deputado, pelo círculo eleitoral do Porto.
José Magalhães lembra-se bem do momento em que tomou a decisão de abandonar o PCP, no princípio dos anos 90. Para trás ficava uma vida de combate político, dois ou três anos de grande trabalho, a que chama mesmo "guerrilha" na revisão constitucional. Foi nesse período, de resto, que conheceu dois Antónios - "o bom e o mau", como diz em tom jocoso, referindo-se a [António] Ameida Santos e Vitorino, com quem haveria de dividir o estatuto de militante do PS, alguns anos depois. "Nós, que estávamos na barca, pela força da idade, no momento em que se começou a tornar clara a falência irremediável do modelo - alguns achavam que era "o sol da terra" - a famosa frase do cunhal no congresso do PC da união soviética - estava na cara que isso ia gerar divergências, fraturas. Só não se sabia à partida qual era a dimensão da fratura, mas sabia-se que iria haver uma definição de campo: o favorável à perestroika e o contrário". Magalhães estava desse último lado da barricada. Tinha sido o deputado do PCP responsável "pelo combate de guerrilha da revisão constitucional de 89 (que durou quase dois anos)" e aí conquistou o que apelida de "espada de honra".

Da independência de Magalhães à expulsão de Zita Seabra
Nesse tempo muitas mudanças se desembrulhavam na vida do deputado: Estava em tratamento a tentar debelar a diabetes - que assolava a família há muito tempo - perdeu 25 quilos, e por isso recorda com nitidez esse período da história. "Levava as minhas biografias, enciclopédias jurídicas, o diabo a sete...mais um pacote de bolachas". As "formidáveis quantidades de energia" que o seu organismo gerava foram uma ajuda "absolutamente vital, e um prazer cós". O picotado da fratura desenhou-se logo a seguir. "Terminada a revisão constitucional, o Dr. [Álvaro] Cunhal decretou a morte da constituição, que tinha sido imolada pelo acordo demoníaco entre o PS e o PSD. Mas a minha teoria era contrária: A floresta constitucional era de tal modo rica, que a poda não tinha chegado ao âmago, e aquela ainda era a Constituição de abril". Isso mesmo conta no seu livro "Dicionário da Revisão Constitucional". "Valeu a pena não ir à praia naquele verão, e escrever no escritório de uns advogados amigos o livrinho que viu a luz do dia em setembro. Lancei aquilo com o Vital Moreira. Na assistência não havia um único deputado do PCP. Tinha juízes do Tribunal Constitucional, vários deputados do PS no ativo - que tinham sido sensíveis aos meus argumentos. Isso tornou-me um tipo em rota de divergência", sublinha José Magalhães.
"Anos depois, o que se verifica é que estamos de acordo. Hoje não anda ninguém no PC a sustentar a morte da Constituição. Portanto, a fratura já não existe". Porém, a maior acha na fogueira da divergência foi a declaração que fez ao jornalista Daniel Reis, ao sair de um wc no parlamento. "Ó Magalhães, o Soares não dava um grande presidente, se se candidatasse? - perguntou-me ele. Eu disse que sim, pois que ele tinha sido uma excelente surpresa". Declaração herética, a sua. Instalada a confusão, foi ter com o camarada Carlos Brito, primeiro, avisando que não lhe viessem pedir para suspender o mandato. O comité haveria de o convocar, mais tarde. Numa máquina IMM, redigiu uma pequena declaração, para entregar a Barbosa de Melo, que então presidia à Assembleia da República, e outra para entregar no partido. Estava escrita a história da sua desfiliação do PCP. "Conservei os amigos que tinha, no partido. Nunca me tornei na viúva de Lenine", sublinha ao DN, à distância de 25 anos. Aderiu ao PS mais tarde, a convite de Almeida Santos e Jorge Sampaio.
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