quarta-feira, agosto 24, 2016

Avivar a Memória no Malomil

A estatistica é como o Biquini :- o que mostra é sugestivo :- o que esconde é vital




Ferro, Salazar e Lefèvre em Sintra, 4 de Agosto de 1935.







No verão de 1935, António Ferro, director do Secretariado de Propaganda Nacional, convidou Frédéric Lefèvre, redactor principal do semanário francês Les Nouvelles Littéraires, a deslocar-se a Portugal para entrevistar Salazar.

A entrevista realizou-se em dois encontros com o ditador, que recebeu o visitante em sua casa, na Rua Bernardo Lima, e com ele conversou em passeios de automóvel e a pé pelos arredores de Lisboa, sempre na companhia do “encenador” António Ferro. Foi publicada em dois números sucessivos do semanário francês, postos à venda a 24 e 31 de Agosto de 1935, na rubrica “Une heure avec…”

A primeira parte da entrevista foi publicada em tradução portuguesa noDiário da Manhã de 3 de Setembro de 1935, com a indicação final “Continua”. A segunda parte, que logicamente deveria ter sido publicada pelo jornal da União Nacional uma semana depois (dia 10), não o foi. Buscando na colecção do diário a continuação da entrevista nos números e semanas seguintes, nada encontrei, estranhando, porém, que uma entrevista de Salazar ficasse suspensa sem qualquer justificação.

Diga-se que a 9 de Setembro começara a ser neutralizada em Lisboa uma tentativa de golpe liderada pelo capitão-de-mar-e-guerra Mendes Norton, há muito esperada pelo governo, que estava ao corrente dos preparativos. Salazar, em férias no Caramulo, acorre à capital no dia 10, com a conjura já sufocada. O país não dera por nada e só foi informado dos acontecimentos por uma nota oficiosa do governo publicada a 11. No dia 14, com os revolucionários já todos presos, Salazar estava de volta ao Caramulo, para continuar as férias.

Não se sabe ao certo a que se deveu a não publicação da continuação da entrevista, mas a essa decisão não foi certamente alheio o próprio Salazar. A razão pode estar relacionada com o ambiente político pós-golpe ou algum aspecto do conteúdo da entrevista julgado inconveniente naquele momento, questão sobre a qual apenas podemos especular.

A entrevista, que abaixo se transcreve integralmente do original em francês, quedou-se até hoje no esquecimento, pois a parte publicada no Diário de Manhã nunca foi reeditada e a segunda parte não foi traduzida nem está disponível senão na sua edição original francesa em papel. O seu conteúdo raramente foi citado em livros ou artigos e, quando o foi, apenas se reproduziu um ou outro pequeno trecho.     

Considero esta entrevista bastante esclarecedora de vários pontos fulcrais do pensamento político do ditador em meados dos anos 30 e até de alguns aspectos pessoais, relacionados com a sua formação intelectual. Por exemplo, as confidências de Salazar sobre leituras e influências doutrinárias, acrescentam alguma coisa ao que já se sabia a esse respeito. Destaco na entrevista os seguintes temas: o elogio do “espírito de pobreza” naquele período de ressaca internacional da Grande Depressão, a crítica da política americana do New Deal (referência às políticas económicas dos “americanos” visando combater a crise e aumentar a produção e o consumo), as considerações sobre a liberdade, a ditadura, a censura, a moralidade, o Estado, o direito, a maleficência do parlamentarismo, as “forças ocultas” (a Maçonaria tinha sido extinta por lei em Portugal dois meses antes), as elites, a crítica da “idolatria da instrução” e o elogio da felicidade dos iletrados. Especialmente de salientar é a firme convicção do ditador de que em vinte ou trinta anos não haveria no mundo um único parlamento com o poder de fazer leis, acreditando, assim, piamente que nas décadas de 50 ou 60 todo o poder legislativo estaria concentrado em executivos ditatoriais.

Nada de especial a dizer do trabalho do prestimoso senhor Lefèvre, que além do ano de nascimento (1889) e da firme fé católica, tinha ainda em comum com Salazar a origem modesta e rural. Lefèvre não omitiu alguns temas incómodos nas perguntas que fez ao ditador, mas sente-se bem a sua gratidão ao regime e a António Ferro pela semana que passou em Lisboa, coisa que o SPN costumava custear.

Frédéric Lefèvre foi redactor principal das Nouvelles Littéraires desde 1922 até à sua morte em 1949. Tinha sido ele o promotor do semanário e o seu principal organizador. Era um jornalista talentoso, além de escritor e ensaísta com vasta obra já publicada: um livro sobre a jovem poesia francesa, vários romances, seis volumes de Entretiens com a nata da intelectualidade francesa, um livro de entrevistas com Paul Valéry e estudos literários sobre Claudel, Blondel, Huysmans e Bernanos. Era das relações de Valéry, Claudel, Maritain e desse outro fervoroso admirador de Salazar, Henri Massis. Até à segunda guerra mundial, Lefèvre realizou perto de 400 entrevistas para a sua famosa rubrica “Une heure avec...”, nas Nouvelles Littéraires. Foi várias vezes acusado de combinações e marchandages com os entrevistados, que alegadamente teriam de pagar para aceder àquela honra, mas até alguns dos maledicentes aceitaram ser entrevistados por Lefèvre, tal a influência que as suas entrevistas tinham na vida literária e mundana parisiense. Em suma, uma escolha apropriada de Ferro, que dedicou uma atenção obsessiva à imagem de Salazar nos meios intelectuais europeus, sobretudo franceses.

http://malomil.blogspot.pt/ 

José Barreto

Sem comentários: