sexta-feira, dezembro 23, 2016

A estatistica é como o Biquini :- o que mostra é sugestivo :- o que esconde é vital


Jogos de Spínola numa floresta de enganos (1972).

     1. Na sequência de vários contactos encetados pelo chefe da delegação da PIDE/DGS em Bissau, António Fragoso Allas, e mediados por um agente duplo, residente em Pirada, na fronteira com o Senegal[1], Spínola havia solicitado formalmente, em Fevereiro de 1972 autorização ao Ministro do Ultramar, Silva Cunha, para realizar uma reunião «reservada e informal» com o Presidente do Senegal, Léopold Senghor, destinada a discutir o futuro da Guiné[2]. Este aceitou-a por se encontrar desiludido com os dirigentes civis portugueses (na sequência do fracasso de duas recentes reuniões secretas, em Paris e em Dacar, entre representantes dos Governos português e senegalês) e ter lido «no Nouvel Observateur, jornal de esquerda, que Spínola era um liberal»[3]. Após uma primeira reunião preparatória, em 27 de Abril, o encontro entre ambos realizou-se em 18 de Maio, no cabo Skiring, em território senegalês.
Pelo lado português, participaram Spínola, Nunes Barata e Fragoso Alas. A conversa durou cerca de duas horas, decorreu em francês e Nunes Barata foi o intérprete. Seguiu-se-lhe um almoço oferecido por Senghor [4].
2. As versões dos intervenientes apresentam algumas divergências. Segundo Senghor falaram «de tudo, da situação militar na Guiné-Bissau, da negritude, das perspectivas do futuro e o general Spínola disse-lhe então que, na sua opinião, a teoria da negritude era realista e legítima; reconheceu que os métodos coloniais portugueses estavam ultrapassados; admitiu o princípio das negociações entre os representantes do Governo português e do PAIGC; e que iria a Portugal defender essa posição»[5]. O “plano de paz” que Senghor levava para a reunião, já antes pública e oficialmente assumido pelo Governo senegalês na ONU, previa a abertura de negociações com o PAIGC e constava de três etapas: a)- a primeira consistiria num cessar-fogo, seguido de negociações sem condições prévias; b)- a segunda começaria, na sequência das negociações, por um período de autonomia interna da Guiné (Bissau), cujas modalidades, limites e prazos seriam discutidos livremente entre, por um lado, os representantes do Governo português e, por outro, os representantes dos diversos movimentos políticos da Guiné (Bissau); c)- finalmente, numa terceira e última etapa, a independência seria concedida, após negociação, no quadro de uma comunidade luso-africana que, a priori, não excluía nada. No entanto, segundo a Acta – que posteriormente Spínola mandou redigir – Senghor apenas pretendia, na altura, discutir o problema da Guiné, para o que considerava muito útil este contacto com Spínola, e não os representantes das demais colónias [6]. 
Na versão de Spínola, além da defesa do “plano de paz”, Senghor «afirmou que em conversas com Amílcar Cabral e com outros chefes de movimentos emancipalistas lhes havia feito sentir a indispensabilidade daquele período de autonomia, ideia a que Amílcar Cabral fora fortemente receptivo» e sugerira mesmo o seu (de Senghor) encontro com Marcelo Caetano em Bissau ou em outro local fora de Portugal Metropolitano[7].
O relato feito por Nunes Barata é muito sucinto: «O governador Spínola explicou ao Presidente Senghor a política que estava a fazer e os objectivos dessa política: concessão ao povo da Guiné da possibilidade de participar nos seus próprios destinos e que a ideia era caminhar para uma autonomia progressiva, autonomia que na altura o general Spínola indicou que poderia decorrer num prazo de 15 anos, ao fim do qual seria dado à população da Guiné o direito de escolher o seu destino. O Presidente Senghor achou que, na situação em que as coisas se encontravam, o prazo era talvez excessivo. Houve ali uma discussão sobre prazos, dez anos, quinze anos, e, na altura, [Senghor] disse que seria talvez interessante um encontro com o engenheiro Amílcar Cabral, encontro esse para o qual o governador Spínola imediatamente se disponibilizou, mas disse que tinha que previamente consultar o seu governo»[8].
A versão de Fragoso Alas é mais pormenorizada: após os preliminares, Senghor manifestou o desejo de ajudar Portugal a resolver o problema ultramarino, para o que se dispunha a servir de intermediário na busca de uma solução. De seguida, interveio Spínola sustentando que «uma fórmula regionalista de inspiração federativa» era a que «melhor correspondia às exigências do presente». Na sequência, Senghor confirmou «a total identidade, nas ideias essenciais, entre o seu pensamento e o do general Spínola, nomeadamente no que respeita à defesa do diálogo […]», cuja necessidade já invocara junto dos dirigentes dos movimentos de libertação da Guiné, Angola e Moçambique, estando agora, ele próprio, «pronto a encontrar-se com o presidente Marcello Caetano em qualquer sítio fora de Portugal metropolitano, inclusive em Bissau». Spínola avançou então haver que «fasear a resolução das dificuldades» e, sendo possível «procurar resolver o problema local, em fase de vanguarda de ulterior solução global [o que] seria um passo decisivo no sentido da solução global do problema ultramarino português» e iria deslocar-se a Lisboa, para expor a Marcelo Caetano os pontos de vista expressos pelo presidente Senghor. Mas, na conclusão apresentada por Allas, Spínola «tomou os seus desejos por realidade e confundiu o Governo central», pois terá referido a Marcelo Caetano «o que o general pretendia» mas que Senghor não havia afirmado, ou seja: «envolver o PAIGC e Amílcar Cabral em negociações…»[9].  
3. Entusiasmado, Spínola, logo depois do encontro, deslocou-se a Lisboa, comunicando a Marcelo Caetano e a Silva Cunha o teor das conversações – cujo prosseguimento foi imediatamente rejeitado pelo primeiro, queixando-se Spínola de terem sido invocadas exclusivamente considerações de ordem jurídico-legal sobre a interpretação e os efeitos de uma situação de cessar-fogo[10]. Então, decepcionado[11] ou até «furioso com a rejeição liminar»[12], Spínola apresentou, em 28 de Maio, um extenso Parecer, desenvolvendo o relato verbal e apreciando a situação político-militar na Guiné (face à qual só se vislumbravam duas alternativas: ou uma viragem de ordem política ou uma prolongada agonia), bem como as propostas decorrentes do encontro com Senghor (em síntese, sugestão de encontros a outro nível), sugerindo o reatamento dos contactos[13]. Sobre ele, Marcelo Caetano redigiu – «de forma lapidar e definitiva»[14] – umasObservações ao Parecer, em 30 de Maio, em cinco pontos [1. Oportunidade das conversações (indeferidas, por serem sinal de fraqueza); 2. Idoneidade do medianeiro (rejeição da intervenção de Senghor) 3. Garantias da convenção (negativo, pela pressão internacional); 4. Idoneidade do segundo interlocutor (rejeição de Amílcar Cabral, pois embora «elemento moderado e amigo de Portugal», recebe ajuda soviética e cubana); 5. Consequências do acordo proposto (por um lado, seria o reconhecimento da fórmula onusina de autodeterminação, que se estenderia aos demais territórios; por outro, deslocaria imediatamente a luta para Cabo Verde], assim confirmando a interrupção das conversações[15]. Em seguida, Marcelo Caetano convidou o Presidente da República para uma reunião restrita do Conselho Superior de Defesa Nacional, destinada a analisar situação na Guiné, onde todos os intervenientes se pronunciaram contra o projecto de Spínola, cabendo a palavra final a Américo Tomás que também o rejeitou tanto mais «que se aproximava o termo do seu mandato como Presidente da República»[16].
4. Luís Nuno Rodrigues refere ainda a tentativa de realizar um segundo encontro no Senegal, agendado para 27 de Julho, para o qual Spínola recebeu autorização apenas “a título pessoal” e ao qual Senghor acabou por não comparecer[17].
 Depois, entrados em fins de Outubro de1972, teria ocorrido uma outra diligência, muito mais importante e surpreendente: Amílcar Cabral fizera chegar a Spínola uma mensagem para um encontro (e «até dizia para o Marcello ir, se quisesse»), que se realizaria «em território português, eventualmente em Bissau» e, mais ainda, «sem quaisquer condições prévias e nos termos do plano de paz de Senghor, mediante a recíproca aceitação de um cessar-fogo». Argumenta Spínola, explicando-a, que o fracasso das conversações via Senghor e «a situação de impasse que se seguiu levaram determinada facção do PAIGC a pressionar Amílcar Cabral no sentido de este se substituir ao Presidente Senghor nas diligências iniciadas». Em posterior entrevista a José Pedro Castanheira, Spínola reiterou ter sido através de Fragoso Allas que lhe chegou esta mensagem de Amílcar Cabral[18]
Porém, Allas nega peremptoriamente tal transmissão e mesmo existência da proposta apontando para uma manobra capciosa de Alpoim Galvão, na sequência de uma operação especial da “Dragão Marinho” (sistema de informações montado por Alpoim Calvão para usar contra a República da Guiné e o PAIGC), envolvendo o já referido agente duplo residente em Pirada e uma filha, para uma reunião em Londres com dois dirigentes do PAIGC (sucessivamente, Luís Cabral e Vítor Saúde Maria), de que aliás Amílcar Cabral tivera conhecimento, sem se comprometer ou participar no contacto (com o “agente” em Londres)[19]. Não obstante, Spínola continuou a invocar esta (falsa) «oportunidade oferecida por Amílcar Cabral» como tendo sido a «última oportunidade»[20]. De qualquer modo, a eventual reunião de Spínola com dirigentes do PAIGC e, em especial com Amílcar Cabral, não se realizaria pois Marcelo Caetano, tal como em Maio, recusou qualquer hipótese de negociação, invocando três razões insuperáveis: «Aceitar a entrevista com Cabral seria, em primeiro lugar, dar a este um estatuto prestigioso no plano interno, como aliás procurava ter no plano internacional; seria, depois, para a mentalidade e manobra do inimigo, uma confissão da sua força e da nossa fraqueza; seria, finalmente, o tal precedente terrível»[21]. Foi, aliás, no decurso da posterior conversa entre ambos sobre a eventualidade destas conversações que chegou a afirmar a Spínola, tocando-lhe fundo, que preferia «sair da Guiné por uma derrota militar com honra» a ter de celebrar «um acordo negociado com os terroristas, abrindo o caminho para outras negociações»[22].
5. Estas conclusões estão todavia viciadas pela sugestão apressada e não confirmada de um eventual encontro de Spínola com Amílcar Cabral (que sempre se propusera a estabelecer negociações com o Governo português, nunca com Spínola). A mais recente posição pública do PAIGC ocorrera na reunião do Conselho de Segurança da ONU realizada em África, em Fevereiro de 1972, em que Amílcar Cabral, intervindo na qualidade de “peticionário” e a concluir a sua intervenção, perante a iminência da declaração unilateral de independência sugerira que os membros permanentes do Conselho de Segurança se concertassem no sentido de exigir que Portugal procedesse, por si e decididamente, à descolonização. Para tal, o Conselho de Segurança deveria impor um prazo e, ainda, enviar uma delegação que incitasse a Marcelo Caetano a iniciar conversações – que, com o PAIGC, e segundo Amílcar Cabral, se poderiam realizar, por exemplo, na sede da ONU[23].
Em suma, no andamento destas duas tentativas de abertura de negociações com o PAIGC, em Maio e Outubro de 1972, Spínola tomara a iniciativa, Senghor oferecia-se como medianeiro e apresentava um “plano de paz”, Spínola pretendia reunir-se directamente com Amílcar Cabral (para alcançar um cessar-fogo e propor “uma fórmula regionalista de inspiração federativa”), Amílcar Cabral tentava negociar a independência imediata da Guiné-Bissau com o Governo português e Marcelo Caetano não aceitava negociar nada com qualquer um deles.
António Duarte Silva

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