Ex-ministro das Finanças diz que Orçamento do Estado “dá a sensação de alguma impreparação”
Bagão Félix diz que pagou o preço de ser independente e de fazer toda a sua vida à margem dos partidos e garante que não vai voltar à política. “Não gosto de correr na pista dos interesses”, afirma o ex-ministro que foi agraciado há uma semana pelo Presidente da República.
Foi condecorado há uma semana pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. É importante para si esse reconhecimento?
Dou importância a nível pessoal e familiar. É o testemunho que deixo para a minha descendência, para as milhas filhas a para as minhas netas e, sobretudo, tem um valor simbólico para mim na medida em que estou afastado da vida política.
É definitivo esse afastamento?
É definitivo, é definitivo. Como o Presidente da República teve ocasião de dizer eu e os outros agraciados – independentemente dos erros que cometemos, dos projetos inacabados – nenhum e nós vive da política. Fomos à política, mas não somos políticos no sentido em que temos a nossa vida profissional completamente independente.
Isso é importante para si.
É fundamental. Eu costumo dizer que sou uma pessoa independente por convicção, no sentido em que gosto de pensar pela minha cabeça. Não dependo de ninguém. Nem de partidos, nem de lugares... Procuro ser autêntico.
Mas também já disse que isso tem os seus custos
Claro que tem. Posso dar-lhe o meu exemplo. Antes de ir para o governo eu fui vice-governador do Banco de Portugal, passei por várias companhias de seguros.
Tive várias atividades, quer académicas, quer profissionais, completamente estáveis e bem remuneradas, não me posso queixar. Fui para o governo e repare bem que desde 2005 não tive mais nenhum lugar que me proporcionasse...
Esses lugares estão destinados para determinadas pessoas?
Estão destinados aos grupos de interesses, quer interesses partidários, quer de grupos fechados. É preciso estar na mesma pista e eu não gosto de correr na pista dos interesses.
Esse é um dos problemas do país que levam a um certo falhanço das nossas elites?
Eu não sei bem o que é isso das elites. Eu só conheço uma elite que é a elite dos valores. As nossas elites são as elites dos interesses. Quais são as nossas elites? São aqueles que influenciam bastante o poder e as decisões, são as elites que têm recursos financeiros, são as elites muito à base daquilo a que São Tomás de Aquino chamava os bens exteriores, que é o dinheiro, a fama, o poder? Eu gosto mais das elites dos bens interiores. A autenticidade, a sensibilidade, o exemplo – nós estamos com uma grande escassez de exemplaridade no nosso país –, porque não temos elites. Ou melhor, temos elites, mas são elites materiais e eu prefiro as elites dos valores.
É um problema que não é só de Portugal?
É global. É engraçado porque a economia como sabe é cada vez mais uma ciência comportamental, mas há coisas que não são matemáticas, como a batota, a ganância, a burla, a mentira. Por isso é que hoje os economistas falham muitas vezes, porque não são capazes de prever, nem de prevenir, este tipo de situações. Mas há pessoas que julgam que ser ético é cumprir a lei.
Há pessoas que o dizem...
Sim, há pessoas que o dizem. A lei diz-nos o que é legal ou ilegal, a ética diz-nos o que é legítimo ou ilegítimo. Ou seja, há muitas coisas que as leis não podem prever. Não há nenhuma lei que possa proibir a ganância, assim como não há nenhuma lei que nos obrigue a ser solidários ou leais, exemplares ou decentes e, nesse sentido, vale a pena pensar que as grandes questões do nosso comportamento estão muito para além e acima da lei. E, portanto, muitas das coisas que se passam na sociedade global resultam de uma aparência de cumprimento da lei e, no entanto, há instituições e há pessoas que, mesmo dentro da lei, são perniciosas para a sociedade.
No caso português tivemos o BPN, a queda do BES, a prisão de José Sócrates... Acredita que alguma coisa pode mudar depois de todos estes casos?
Eu não sei responder a essa questão. O que eu sei é colocar uma questão: será que agora é pior do que era antes ou sabemos algumas coisas que não sabíamos antes? Essa é uma questão. O facto de elas virem à luz do dia é positivo na medida em que pelo menos podem ter algum efeito dissuasor. Mas há um risco que é relativamente elevado no nosso país, que é o risco de as pessoas perguntarem: “Mas depois de tantos anos e de tantos processos, tantos inquéritos, tantas investigações, a montanha pariu um rato?”. Há uma maior censura pública do povo, que de algum modo é dissuasora, mas depois há o outro aspeto que é muitas vezes as expectativas saírem defraudadas.
Na vida política também assistimos a algumas mudanças significativas no sistema político, nomeadamente com a disponibilidade do PCP e do BE para apoiarem um governo. Como é que vê esta nova realidade?
Penso, em primeiro lugar, que a situação de um derrotado em toda a linha ser hoje primeiro-ministro não lhe tira a capacidade legal e constitucional de o ser, mas está ferido de alguma legitimidade política, porque não foi sufragado pelos eleitores. Mas estamos perante esta realidade e acho que foi bom para a democracia que se tenha atenuado a ideia de existirem partidos de primeira e partidos de segunda. Todos os partidos, gostando-se ou não deles, são importantes. A nossa Assembleia da República, até à formação deste governo, estava limitada a soluções de 80% dos deputados. Hoje não é assim e isso retira força a uma perversão da natureza das eleições legislativas, que são eleições para eleger os deputados e que eram vistas como eleições para o primeiro-ministro e isso reforçava a ideia do voto útil.
E isso tinha inconvenientes?
Eu acho que o voto útil é bom para quem o recebe, mas não é necessariamente bom para quem o dá.
Vai ser mais difícil haver maiorias absolutas a partir de agora?
Eu cada vez mais sou favorável a governos de coligação.
Independentemente de essa coligação ser feita com partidos que são contra as regras da União Europeia?
Sim. Isso também faz esses partidos, como já estamos a ver noutros países e de algum modo em Portugal, assumirem uma atitude mais responsável. O discurso do PCP e do BE não é o discurso de há três ou quatro anos, ou seja, eles próprios também têm uma roupagem que lhes permite ser mais responsáveis. Eu já não vejo a ferocidade contra o euro que existia nalguns desses partidos e não acho que seja mau haver partidos contra o “establishment” a apoiar o governo.
O Presidente levantou essa questão, quando lembrou que nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas e considerou que a solução era inconsistente.
Mas é bom que os países que estão contra as regras do euro sintam as dificuldades práticas que resultam disso. Esse banho de realidade aumenta-lhes a responsabilidade. Goste-se ou não a política tem que ser muito pragmática. Nós perdemos soberania, temos condições resultantes de estar no espaço europeu e de termos uma divida pública que nos põe claramente na esteira dos principais credores. Há limitações objetivas, não vale a pena nós lutarmos, pelo menos no curto prazo, contra elas.
Esta situação pode criar dois blocos, um de direita e outro de esquerda, que terão grande dificuldade de comunicar entre si e de fazer consensos?
Eu não me dou muito bem com a ideia da direita e da esquerda. Eu pessoalmente sou contra grandes coligações, aquilo a que normalmente chamamos Bloco Central. As grandes coligações acabam por esvaziar a diferença. A diferença é um elemento estruturante da política. O direito à diferença é um elemento essencial e quando se anulam as diferenças e todos os interesses convergem num poder quase absoluto isso não é bom para o país. Nesse sentido, creio que a circunstância que resulta deste governo tornou mais alargada a combinação de coligações possíveis. Não me parece nada dramático. Pelo contrário. O sistema político-partidário português está muito amarrado, sem respiração.
Esta solução que foi encontrada por António Costa tem condições para durar quatro anos?
Eu sou daqueles que defendo a estabilidade como valor patrimonial do país, mas é um valor patrimonial não absoluto. A estabilidade é boa até ao ponto em que ela seja relativamente adequada aos interesses estratégicos do país. É o valor importante, mas não é o primeiro. O primeiro é a boa governação. Acho que em 2016 a questão não se vai colocar. Nenhum partido está interessado em eleições. O CDS está em renovação, o PSD está em período de quarentena. O PS está no governo e os outros partidos vão tentando fazer a sua faturação em termos políticos. O Bloco de Esquerda, neste momento, é claramente quem domina a agenda política, apesar de não estar no governo. 2017 vai ser um ano mais difícil. Primeiro porque o orçamento deste ano é à pele e está ferido, não direi de morte, mas ferido de muito problemática execução.
Porquê?
É um orçamento mal concebido, com muitas ambiguidades. Ele passou sob tutela europeia, está sob vigilância forte, e ou temos a sorte de ter uma boa execução, o que me parece bastante difícil, ou chegamos a meio do ano e teremos de aplicar o plano B. E depois em Outubro temos de apresentar o orçamento para 2017, que eu admito que seja francamente difícil. António Costa diz que viramos a página da austeridade, mas em Bruxelas desviraram-lhe a página da austeridade.
Julga que vão ser precisas mais medidas de austeridade?
Eu não sei qual é o plano B, mas se houver necessidade de haver um plano B o governo não tem muitas soluções. Não pode aumentar mais impostos, porque já estamos nos limites. Penso que o plano B não fugirá muito de reverter algumas medidas que este governo reverteu em relação ao anterior. Este é um ponto importante. Não ponho em causa que o governo tenha revertido algumas medidas, o que está em causa é a velocidade desta reversão. Não é por acaso que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças andam a dizer coisas diferentes relativamente à entrada em vigor das 35 horas. É um orçamento para o qual ainda não se fizeram contas em relação às 35 horas.
Votaria contra este orçamento se fosse caso disso?
Votaria contra sobretudo porque a previsão macroeconómica está inchada e votaria contra na medida em que a alteração que se faz nas medidas, quer do lado da despesa, quer nas medidas fiscais, parece-me precipitada e excessivamente rápida. Seria mau amanhã perceber que não pode ser assim. Isso seria mau para os beneficiários diretos e é mau no contexto europeu, porque nos podem dizer que não sabemos fazer orçamentos. Aliás, eu tenho aqui as 46 páginas de errata e nunca vi uma coisa destas. Isto dá uma sensação de um orçamento feito à pressa. Dá a sensação de alguma impreparação.
Já foi ministro das Finanças. Qual é a opinião que tem sobre Mário Centeno?
Conheço mal. É uma pessoa preparadíssima, mas admito que esteja com algumas dificuldades no seio do mainstream governamental. Por exemplo, ele tem um secretário de Estado, que é o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, que todos os dias aparece para dizer umas coisas. Não precisamos de governantes para anunciarem estudos ou estados de alma.
É verdade que este governo está a colocar os mercados nervosos, como disse o ministro das Finanças alemão?
Era bom que ele tivesse dado essa reprimenda à França ou à Itália, mas aí tem mais dificuldade. Eu acho que uma das razões para avolumar as crises é anunciá-las previamente e nesse aspeto o ministro Schäuble foi pouco prudente e não precisa de ter uma visão paternalista sobre como é que os mercados devem olhar para Portugal.
Isso corresponde à ideia que a direita quer passar de que este caminho nos leva a um novo resgate. É verdade que existe esse risco?
Eu sinceramente acho que, independentemente dos erros que este governo possa cometer e já cometeu alguns, hoje temos o Banco Central Europeu muito mais actuante. Temos a Europa, apesar de tudo, com armas que não existiam antes. Eu desejo que a política em Portugal não seja maniqueísta. Nem completamente alarmista, nem completamente fantasista.
Como é que vê o futuro da direita? O CDS vai mudar de liderança no próximo congresso. A direita precisa de mudar?
O CDS é um partido importante e agora tem um trauma de uma liderança fortíssima e notável. Paulo Portas, ao contrário do que durante muito tempo se pensou, conseguiu criar uma equipa muita dinâmica e inteligente de discípulos que podem continuar, mas se quer a minha opinião a nova liderança corre o risco do pecado original. Pecado não dela, mas pecado original da solução que é suceder a um líder forte. Muitas vezes isso traduz-se na transitoriedade dessa liderança. Eu desejaria que não, porque tenho uma ligação doutrinária à democracia-cristã e ela tem um pensamento muito bem estruturado.
Era muito ouvido por Paulo Portas?
Sim. Nós conhecemo-nos há 30 anos e falamos muitas vezes. Procurei ajudá-lo. Nestes últimos anos, em que ele esteve no governo, não falamos tanto, mas somos duas pessoas que nos respeitamos. Acho que ele fez bem em sair. Foi uma atitude muito lúcida e corajosa.
Ao contrário de Passos Coelho que resolveu continuar na liderança do PSD?
Isso é uma questão do PSD, mas acho que numa coisa ele tem razão, porque ele foi o vencedor das eleições. E foi vencedor das eleições num ambiente em que há partida tinha 99% das hipóteses de as perder.
Pelo que li tem quase todos os discos do Zeca Afonso aqui em casa...
Tenho. Dele e do Adriano Correia de Oliveira. E continuo a ouvi-los.
Há alguma letra de que goste especialmente?
Gosto muito dos poemas do Manuel Alegre cantados pelo Adriano Correia de Oliveira. Não tenho barreiras nesse aspecto e a idade deu-me mais abertura de espírito.
É verdade que eles comem tudo e não deixam nada?
Zeca Afonso foi premonitório. Só foi noutro contexto e com outra medida, mas este é um problema do mundo, Nós vivemos numa lógica em que o poder político está muito condicionado pelo poder económico e o poder económico está nas mãos do poder financeiro e foi isso que levou a uma desintegração da economia real.
luis.claro@ionline.pt
Foi condecorado há uma semana pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. É importante para si esse reconhecimento?
Dou importância a nível pessoal e familiar. É o testemunho que deixo para a minha descendência, para as milhas filhas a para as minhas netas e, sobretudo, tem um valor simbólico para mim na medida em que estou afastado da vida política.
É definitivo esse afastamento?
É definitivo, é definitivo. Como o Presidente da República teve ocasião de dizer eu e os outros agraciados – independentemente dos erros que cometemos, dos projetos inacabados – nenhum e nós vive da política. Fomos à política, mas não somos políticos no sentido em que temos a nossa vida profissional completamente independente.
Isso é importante para si.
É fundamental. Eu costumo dizer que sou uma pessoa independente por convicção, no sentido em que gosto de pensar pela minha cabeça. Não dependo de ninguém. Nem de partidos, nem de lugares... Procuro ser autêntico.
Mas também já disse que isso tem os seus custos
Claro que tem. Posso dar-lhe o meu exemplo. Antes de ir para o governo eu fui vice-governador do Banco de Portugal, passei por várias companhias de seguros.
Tive várias atividades, quer académicas, quer profissionais, completamente estáveis e bem remuneradas, não me posso queixar. Fui para o governo e repare bem que desde 2005 não tive mais nenhum lugar que me proporcionasse...
Esses lugares estão destinados para determinadas pessoas?
Estão destinados aos grupos de interesses, quer interesses partidários, quer de grupos fechados. É preciso estar na mesma pista e eu não gosto de correr na pista dos interesses.
Esse é um dos problemas do país que levam a um certo falhanço das nossas elites?
Eu não sei bem o que é isso das elites. Eu só conheço uma elite que é a elite dos valores. As nossas elites são as elites dos interesses. Quais são as nossas elites? São aqueles que influenciam bastante o poder e as decisões, são as elites que têm recursos financeiros, são as elites muito à base daquilo a que São Tomás de Aquino chamava os bens exteriores, que é o dinheiro, a fama, o poder?
É um problema que não é só de Portugal?
É global. É engraçado porque a economia como sabe é cada vez mais uma ciência comportamental, mas há coisas que não são matemáticas, como a batota, a ganância, a burla, a mentira. Por isso é que hoje os economistas falham muitas vezes, porque não são capazes de prever, nem de prevenir, este tipo de situações. Mas há pessoas que julgam que ser ético é cumprir a lei.
Há pessoas que o dizem...
Sim, há pessoas que o dizem. A lei diz-nos o que é legal ou ilegal, a ética diz-nos o que é legítimo ou ilegítimo. Ou seja, há muitas coisas que as leis não podem prever. Não há nenhuma lei que possa proibir a ganância, assim como não há nenhuma lei que nos obrigue a ser solidários ou leais, exemplares ou decentes e, nesse sentido, vale a pena pensar que as grandes questões do nosso comportamento estão muito para além e acima da lei. E, portanto, muitas das coisas que se passam na sociedade global resultam de uma aparência de cumprimento da lei e, no entanto, há instituições e há pessoas que, mesmo dentro da lei, são perniciosas para a sociedade.
No caso português tivemos o BPN, a queda do BES, a prisão de José Sócrates... Acredita que alguma coisa pode mudar depois de todos estes casos?
Eu não sei responder a essa questão. O que eu sei é colocar uma questão: será que agora é pior do que era antes ou sabemos algumas coisas que não sabíamos antes? Essa é uma questão. O facto de elas virem à luz do dia é positivo na medida em que pelo menos podem ter algum efeito dissuasor. Mas há um risco que é relativamente elevado no nosso país, que é o risco de as pessoas perguntarem: “Mas depois de tantos anos e de tantos processos, tantos inquéritos, tantas investigações, a montanha pariu um rato?”. Há uma maior censura pública do povo, que de algum modo é dissuasora, mas depois há o outro aspeto que é muitas vezes as expectativas saírem defraudadas.
Na vida política também assistimos a algumas mudanças significativas no sistema político, nomeadamente com a disponibilidade do PCP e do BE para apoiarem um governo. Como é que vê esta nova realidade?
Penso, em primeiro lugar, que a situação de um derrotado em toda a linha ser hoje primeiro-ministro não lhe tira a capacidade legal e constitucional de o ser, mas está ferido de alguma legitimidade política, porque não foi sufragado pelos eleitores. Mas estamos perante esta realidade e acho que foi bom para a democracia que se tenha atenuado a ideia de existirem partidos de primeira e partidos de segunda. Todos os partidos, gostando-se ou não deles, são importantes. A nossa Assembleia da República, até à formação deste governo, estava limitada a soluções de 80% dos deputados. Hoje não é assim e isso retira força a uma perversão da natureza das eleições legislativas, que são eleições para eleger os deputados e que eram vistas como eleições para o primeiro-ministro e isso reforçava a ideia do voto útil.
E isso tinha inconvenientes?
Eu acho que o voto útil é bom para quem o recebe, mas não é necessariamente bom para quem o dá.
Vai ser mais difícil haver maiorias absolutas a partir de agora?
Eu cada vez mais sou favorável a governos de coligação.
Independentemente de essa coligação ser feita com partidos que são contra as regras da União Europeia?
Sim. Isso também faz esses partidos, como já estamos a ver noutros países e de algum modo em Portugal, assumirem uma atitude mais responsável. O discurso do PCP e do BE não é o discurso de há três ou quatro anos, ou seja, eles próprios também têm uma roupagem que lhes permite ser mais responsáveis. Eu já não vejo a ferocidade contra o euro que existia nalguns desses partidos e não acho que seja mau haver partidos contra o “establishment” a apoiar o governo.
O Presidente levantou essa questão, quando lembrou que nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas e considerou que a solução era inconsistente.
Mas é bom que os países que estão contra as regras do euro sintam as dificuldades práticas que resultam disso. Esse banho de realidade aumenta-lhes a responsabilidade. Goste-se ou não a política tem que ser muito pragmática. Nós perdemos soberania, temos condições resultantes de estar no espaço europeu e de termos uma divida pública que nos põe claramente na esteira dos principais credores. Há limitações objetivas, não vale a pena nós lutarmos, pelo menos no curto prazo, contra elas.
Esta situação pode criar dois blocos, um de direita e outro de esquerda, que terão grande dificuldade de comunicar entre si e de fazer consensos?
Eu não me dou muito bem com a ideia da direita e da esquerda. Eu pessoalmente sou contra grandes coligações, aquilo a que normalmente chamamos Bloco Central. As grandes coligações acabam por esvaziar a diferença. A diferença é um elemento estruturante da política. O direito à diferença é um elemento essencial e quando se anulam as diferenças e todos os interesses convergem num poder quase absoluto isso não é bom para o país. Nesse sentido, creio que a circunstância que resulta deste governo tornou mais alargada a combinação de coligações possíveis. Não me parece nada dramático. Pelo contrário. O sistema político-partidário português está muito amarrado, sem respiração.
Esta solução que foi encontrada por António Costa tem condições para durar quatro anos?
Eu sou daqueles que defendo a estabilidade como valor patrimonial do país, mas é um valor patrimonial não absoluto.
Porquê?
É um orçamento mal concebido, com muitas ambiguidades. Ele passou sob tutela europeia, está sob vigilância forte, e ou temos a sorte de ter uma boa execução, o que me parece bastante difícil, ou chegamos a meio do ano e teremos de aplicar o plano B. E depois em Outubro temos de apresentar o orçamento para 2017, que eu admito que seja francamente difícil. António Costa diz que viramos a página da austeridade, mas em Bruxelas desviraram-lhe a página da austeridade.
Julga que vão ser precisas mais medidas de austeridade?
Eu não sei qual é o plano B, mas se houver necessidade de haver um plano B o governo não tem muitas soluções. Não pode aumentar mais impostos, porque já estamos nos limites. Penso que o plano B não fugirá muito de reverter algumas medidas que este governo reverteu em relação ao anterior. Este é um ponto importante. Não ponho em causa que o governo tenha revertido algumas medidas, o que está em causa é a velocidade desta reversão. Não é por acaso que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças andam a dizer coisas diferentes relativamente à entrada em vigor das 35 horas. É um orçamento para o qual ainda não se fizeram contas em relação às 35 horas.
Votaria contra este orçamento se fosse caso disso?
Votaria contra sobretudo porque a previsão macroeconómica está inchada e votaria contra na medida em que a alteração que se faz nas medidas, quer do lado da despesa, quer nas medidas fiscais, parece-me precipitada e excessivamente rápida. Seria mau amanhã perceber que não pode ser assim. Isso seria mau para os beneficiários diretos e é mau no contexto europeu, porque nos podem dizer que não sabemos fazer orçamentos. Aliás, eu tenho aqui as 46 páginas de errata e nunca vi uma coisa destas. Isto dá uma sensação de um orçamento feito à pressa. Dá a sensação de alguma impreparação.
Já foi ministro das Finanças. Qual é a opinião que tem sobre Mário Centeno?
Conheço mal. É uma pessoa preparadíssima, mas admito que esteja com algumas dificuldades no seio do mainstream governamental. Por exemplo, ele tem um secretário de Estado, que é o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, que todos os dias aparece para dizer umas coisas. Não precisamos de governantes para anunciarem estudos ou estados de alma.
É verdade que este governo está a colocar os mercados nervosos, como disse o ministro das Finanças alemão?
Era bom que ele tivesse dado essa reprimenda à França ou à Itália, mas aí tem mais dificuldade. Eu acho que uma das razões para avolumar as crises é anunciá-las previamente e nesse aspeto o ministro Schäuble foi pouco prudente e não precisa de ter uma visão paternalista sobre como é que os mercados devem olhar para Portugal.
Isso corresponde à ideia que a direita quer passar de que este caminho nos leva a um novo resgate. É verdade que existe esse risco?
Eu sinceramente acho que, independentemente dos erros que este governo possa cometer e já cometeu alguns, hoje temos o Banco Central Europeu muito mais actuante. Temos a Europa, apesar de tudo, com armas que não existiam antes. Eu desejo que a política em Portugal não seja maniqueísta. Nem completamente alarmista, nem completamente fantasista.
Como é que vê o futuro da direita? O CDS vai mudar de liderança no próximo congresso. A direita precisa de mudar?
O CDS é um partido importante e agora tem um trauma de uma liderança fortíssima e notável. Paulo Portas, ao contrário do que durante muito tempo se pensou, conseguiu criar uma equipa muita dinâmica e inteligente de discípulos que podem continuar, mas se quer a minha opinião a nova liderança corre o risco do pecado original. Pecado não dela, mas pecado original da solução que é suceder a um líder forte. Muitas vezes isso traduz-se na transitoriedade dessa liderança. Eu desejaria que não, porque tenho uma ligação doutrinária à democracia-cristã e ela tem um pensamento muito bem estruturado.
Era muito ouvido por Paulo Portas?
Sim. Nós conhecemo-nos há 30 anos e falamos muitas vezes. Procurei ajudá-lo. Nestes últimos anos, em que ele esteve no governo, não falamos tanto, mas somos duas pessoas que nos respeitamos. Acho que ele fez bem em sair. Foi uma atitude muito lúcida e corajosa.
Ao contrário de Passos Coelho que resolveu continuar na liderança do PSD?
Isso é uma questão do PSD, mas acho que numa coisa ele tem razão, porque ele foi o vencedor das eleições. E foi vencedor das eleições num ambiente em que há partida tinha 99% das hipóteses de as perder.
Pelo que li tem quase todos os discos do Zeca Afonso aqui em casa...
Tenho. Dele e do Adriano Correia de Oliveira. E continuo a ouvi-los.
Há alguma letra de que goste especialmente?
Gosto muito dos poemas do Manuel Alegre cantados pelo Adriano Correia de Oliveira. Não tenho barreiras nesse aspecto e a idade deu-me mais abertura de espírito.
É verdade que eles comem tudo e não deixam nada?
Zeca Afonso foi premonitório. Só foi noutro contexto e com outra medida, mas este é um problema do mundo, Nós vivemos numa lógica em que o poder político está muito condicionado pelo poder económico e o poder económico está nas mãos do poder financeiro e foi isso que levou a uma desintegração da economia real.
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