segunda-feira, março 21, 2016

12. OS 5 TOSTÕES DO CONTABILISTA VARELA
 A "Parada da Paródia" foi um êxito, logo a partir do primeiro número (10 de Novembro de 1960). Custava vinte e cinco tostões, tinha 16 páginas, impressas tipograficamente, a duas cores, em papel de jornal, na rotativa da "Casa Portuguesa", na Rua das Gáveas. A capa era do João Martins (como seriam todas as outras, até ao último número) e, nesse nº1, além do "Expediente do Director". publicava as secções "Rádio Crime - Patilhas, Ventoínha & Flausina", "Teatro Trágico", "O Compadre Alentejano", "Aventuras de Jack-Taxas e Cara-Linda", "Ver, Ouvir e Gozar" (cujo autor era o Rolo Duarte), "Meia Bola e Força" (do Carlos Pinhão), além do anúncio do Concurso para eleição da "Flausina-Modelo" e do "Baubau-Modelo", preenchendo o resto do espaço com diálogos, peças de teatro, fotogozos, anedotas ilustradas e de texto, e assim por diante. Na ficha técnica, além dos nomes já citados, apareciam ainda os dos desenhadores Túlio Coelho e Manel (Manuel Vieira).
Esse número 1 foi um verdadeito estouro! Teve de ser reforçada a edição, à pressa, atingindo-se os 54 mil exemplares, o que era verdadeiramente extraordinário, para a época! Por isso, a partir do número 2, "brindaram-se" os leitores com mais 8 páginas (passando a 24; mais tarde, a partir do nº 27, ainda se acrescentaram mais 4 páginas, estas impressas a offset).
As coisas corriam muito bem, em termos de vendas - até que, já em 1961, com o início da guerra em Angola, se começou a notar uma certa quebra. As pessoas andavam inquietas com o que se passava em África, compravam mais jornais diários, por causa da informação, aliás escassa, e estavam menos viradas para publicações deste género. No entanto, tudo indicava que o jornal, do ponto de vista comercial, continuava a ser um bom negócio.
Só que...
Ao contrário do que se passa no marketing moderno, as contas, nesse tempo, não serviam para se fazer, dia a dia, a gestão do negócio: serviam, isso sim, para - com um atraso de meses ou, mesmo, de anos! - se apresentarem, finalmente, uns balancetes muito bem elaborados, sim senhor, mas que apenas serviam para se ficar a conhecer o aspecto "histórico" do passado.
Era assim a contabilidade de então. E era assim o nosso contabilista, um simpático senhor Varela, uma jóia de pessoa, mas aquilo a que se pode chamar, com propriedade, um atraso de vida. Todas as semanas lhe perguntava: "Então, senhor Varela, as contas do jornal? Quantos exemplares se estão a vender?" - e, todas as semanas, ele respondia, invariavelmente: "Estou a fazer o balancete, mas há uma diferençazinha..." E eu insistia: "Mas, não me pode dar uma ideia? Não me interessam números exactos, só quero saber, pouco mais ou menos... Vendem-se vinte mil, cem mil, ou só quinhentos exemplares? Uma coisa aproximada!" E ele: "Tenho que ver melhor. Há uma diferençazinha..."
Ao fim de vários meses desta conversa, já era aos berros que eu insistia: "Mas isto, afinal, está a vender ou não está?!" E o senhor Varela: "Há uma diferençazinha. Ando à procura de cinco tostões..."
Ofereci-me para dar, generosamente, do meu bolso, os cinco tostões, para arrumar a questão. Nem pensar! O senhor Varela sorria e repetia: "Só depois de acertar as contas. Há uma diferençazinha de cinco tostões..."
Acreditem ou não, esta cena durou meses. Melhor, durou anos. Entretanto, os manos Andrades, que se tinham habituado a viver à larga, pois os programas de rádio, nessa altura, davam muito dinheiro, começaram a andar inquietos. É que havia, em cada mês, duas grandes facturas a pagar: a do tempo de antena no RCP (que era sagrada e tinha de ser paga até ao último dia de cada mês) e a da tipografia (que, por uma nabice incompreensível, tinham combinado pagar até ao dia 8 seguinte). Claro que, depois do esforço de cobranças de cada fim de mês, era muito difícil, nos 8 dias seguintes, cobrar o suficiente para pagar a gorda factura da tipografia. Por isso, a ideia tonta que se instalou naquelas cabecinhas foi esta: "Se é tão difícil arranjar o dinheiro para pagar as despesas do jornal... é porque o jornal não está a dar dinheiro!" E, como o sr. Varela não dava números, por causa dos 5 tostões que faltavam, esta suspeita foi-se transformando em certeza. Um dia, os Andrades convocaram a malta do jornal e disseram que este tinha que acabar.
Argumentar, como, se não havia dados, números, estatísticas? E se eles é que eram os financiadores? Assim acabou a "Parada da Paródia", ingloriamente... em plena glória editorial.
É que, mais de seis meses depois, entra-me o senhor Varela pelo gabinete dentro, com um sorriso radiante, uns papéis cheios de algarismos na mão, cantando vitória: "Pronto, aqui estão as contas! Sempre achei a tal diferença dos cinco tostões. E, olhe, sabe uma coisa muito engraçada?... Mesmo nas semanas mais fracas, quando foi aquela coisa da guerra de Angola, o jornal deu sempre lucro! Sempre!"
O senhor Varela já morreu há anos. De morte natural. Mas, até hoje, não consegui explicar o que me impediu, naquele dia e naquela hora, de o assassinar o mais barbaramente possível.

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