segunda-feira, março 21, 2016

5 - AS AVENTURAS DO "PICAPAU"
 Foi ainda o Stuart Carvalhais quem me desafiou para uma aventura que começaria com alguma dificuldade, duraria um ano mais sete semanas - e terminaria razoavelmente mal.
Foi assim:
Como já contei, o Stuart tinha aquilo que se poderia chamar um relacionamento privilegiado com o "Diário de Notícias", a nível da sua Direcção e, igualmente, da Administração. Esta controlava, não só aquele importante jornal diário, como, também, a ENP - Empresa Nacional de Publicidade, que era a proprietária do "DN" e, ainda, do "Anuário Comercial", do "Mundo Desportivo", da revista de cinema "Estúdio", do juvenil "Diabrete", depois substituído pelo "Cavaleiro Andante", etc.
Um dia, o Stuart diz-me: "E se a gente fosse ao Diário de Notícias, apresentar uma proposta para fazermos uma revista humorística?"
O meu primeiro pensamento, confesso, foi este: "Olha, está com os copos!" É que, para mim, nesse tempo, o "Diário de Notícias" era uma instituição tão grande, tão gigantesca, tão inacessível, que me parecia perfeitamente impensável entrar um dia por aquela misteriosa porta rotativa, subir aquelas escadarias, chegar ao piso da Administração e dizer: "Aqui está uma maquete e um plano de trabalho para um semanário de humor".
Pois bem, foi isso mesmo que aconteceu, semanas depois daquela primeira conversa. O Stuart dizia-me então: "Tu és organizadinho, sabes fazer estas coisas, escreves bem, podes arranjar aí uma proposta toda bonita! Eu, cá pela minha banda, trato de arranjar os contactos e de mexer os cordelinhos para eles aceitarem a ideia. E tenho a certeza de que aceitam mesmo!".
Eu não estava assim tão confiante. A experiência anterior, de algumas "tampas" que apanhara, ao apresentar propostas semelhantes, a alguns editores, não me dava grandes esperanças. Mas o Stuart acreditava que aquilo ia pegar, pela certa. Fizemos, pois, uma maquete, toda muito bem apresentada, para uma revista humorística semanal, a cores, que se chamaria "Picapau". Estudámos o plano geral, o formato, a paginação, a colunagem, as secções, a lista dos colaboradores, os custos, enfim, tudo. E, um dia, lá passámos, os dois, a tal porta rotativa do "Notícias", subimos a escada e, de repente, estávamos no gabinete da Administração - eu um bocadito nervoso, o Stuart muito descontraído, como sempre, a contar piadas aos dois Administradores que nos tinham recebido.
Lembro-me perfeitamente das caras deles: o Dr. José Gonçalves, pequenino, escuro, seco, trombudo, e o Dr. João Dinis, grande, amável, risonho e simpático. O Stuart encarregou-me da parte técnica da conversa: a ideia geral, o estilo da revista, a forma como nos propúnhamos trabalhar, a equipa de colaboradores, etc.
E, quando eu estava à espera de uma nega fria e seca - eis que o Dr. José Gonçalves, depois de folhear a maquete e a papelada, nos diz: "Sim senhor, isto tem pernas para andar. Assim que chegar a máquina de impressão nova de que estamos à espera, vamos avançar".
Cá fora, na Avenida da Liberdade, ria-se o Stuart, todo contente: "Eu não te dizia? Vamos fazer uma revista humorística como nunca houve nenhuma, desde o tempo do Rafael Bordalo Pinheiro! Anda, vamos ali beber qualquer coisa, para comemorar!"
 Na verdade, o primeiro número só sairia dali a mais de um ano. É que a máquina - a tal nova máquina de impressão a cores, coisa fina, adquirida na Alemanha, e que estava destinada a imprimir, além do "Picapau", também o "Cavaleiro Andante" e outras publicações - não havia meio de chegar a Portugal e ao Bairro Alto, onde eram então as oficinas do Anuário Comercial, na Travessa do Poço da Cidade, e onde nos concederam um espaço, lá no último piso, para a nossa redacção.
Quando a máquina, finalmente, chegou... não cabia pela porta! Foi preciso deitar abaixo uma parte da parede, para ela entrar e ser instalada. E, depois disto tudo, não imprimia bem, tinha uma misteriosa avaria, que fazia com que só imprimisse uma parte do papel, deixando metade da folha em branco. Coisa estranha! Veio um técnico, de propósito, da Alemanha. Caríssimo! Fomos assistir à "desempanagem" da máquina. O técnico vestiu uma bata branca (a rapaziada lusitana da oficina andava toda, nesse tempo, de fato-macaco), meteu a mãozinha lá por detrás de um painel, apertou um parafuso... e a máquina começou a trabalhar impecavelmente!
O Dr. José Gonçalves, que tinha fama de forreta (fama que eu comprovaria depois; já vos conto essa parte da história) ficou danado com aquilo: tinha gasto um dinheirão para mandar vir, da Alemanha, um técnico especializadíssimo, que, afinal, só viera a Portugal - apertar um parafuso!
Daí a dias, começava a imprimir-se o "Picapau".
Daí a dias, começavam as tricas entre nós, os do "Picapau", e a Administração.

Foi assim:
Como contei atrás, tinha elaborado um plano, muito minucioso, sobre a forma de produzir a revista.
Eu seria o Director; o Stuart Carvalhais era o Director Artístico; e o Matos Maia figurava na ficha como Chefe de Redacção - e, também, como Proprietário. Porquê? Porque a Administração, apesar de tudo, tinha algum receio de que a revista não saísse com a qualidade necessária para poder figurar, perante o público e a concorrência, como pertencendo à ENP. Então, à cautela, a papelada oficial foi organizada de forma que a propriedade figurasse como sendo do Matos Maia - embora, depois, o advogado da ENP preparasse um documento, através do qual este passaria todos os seus direitos para a verdadeira dona da revista.
Do mesmo plano constava, igualmente, a lista dos colaboradores (os escreventes e os desenhistas), ficando bem expresso que a responsabilidade da sua escolha seria sempre minha. Quanto aos pagamentos, eu receberia uma quantia certa por número, da qual pagaria aos colaboradores, como entendesse. Fora tudo aprovado. Só que...
Aqui entra a história do Carlos Pinhão.
Este fora jornalista do "Mundo Desportivo", que pertencia à Empresa. Um dia, foi destacado para ir cobrir, já não sei em que país da Europa, um campeonato qualquer, também não sei de que modalidade, nem interessa. O Carlos Pinhão foi, de comboio, hospedou-se num hotel baratinho e, quando o tal campeonato terminou, comunicou, por telefone, para a redacção do "Mundo Desportivo", a respectiva classificação dos participantes, do primeiro até ao sexto, para sair na edição do dia seguinte.
É de sublinhar que, nesse tempo, estas coisas eram complicadas. As tecnologias eram um bocadito primitivas. Telefonar do estrangeiro era considerado quase um luxo. E os jornais desportivos não tinham as receitas que têm hoje.
Quando o Pinhão regressou a Lisboa, foi chamado ao gabinete do Dr. José Gonçalves, que, furibundo e ameaçador, lhe pregou uma valente descompostura. Que parecia impossível, que ele andara a desbaratar o dinheiro do jornal, que fora enviado ao estrangeiro, custara um dinheirão em combóios, hotéis, comes e bebes, mais a linha telefónica - e, depois desta despesona enorme, apenas comunicara os resultados... até ao sexto classificado! Um escândalo!
Com aquele arzinho meio tímido que sempre teve, o Carlos Pinhão observou, baixinho: "Ó senhor doutor, desculpe, mas eu não podia indicar mais do que os seis primeiros... porque eram apenas seis a concorrer..."
O outro ficou embatucado, mandou-o sair - e, lá no fundo, ficou-lhe com um pó que nunca mais o pôde ver! Ainda por cima, algum tempo depois, ele ia-se embora para a concorrência: transferiu-se para "A Bola"!
Ora bem, o Carlos Pinhão foi convidado por mim para escrever, no nosso "Picapau", uma secção cómico-desportiva intitulada "Meia bola e força". Quando o Administrador viu o nome dele na lista dos colaboradores, mandou-me chamar e disse-me que eu tinha que pôr a andar o Carlitos. E eu disse-lhe, respeitosamente, que nem pensar. Que ficara à minha responsabilidade a escolha dos colaboradores e não prescindia daquele, que escrevia bem e com graça. Ele foi reler a proposta que aceitara, um ano antes, resmungou um seco " bem!" e foi encerrada a sessão. Pronto! Pela expressão escura da sua cara, vi logo que aquilo ia dar sarilho.
E deu mesmo. O "Picapau" foi saindo - mas, quando estava para ser posto à venda o número 7, fui informado de que a publicação ia ser cancelada "porque está-se a vender mal". Sabíamos muito bem que era uma treta - e, mesmo que o não fosse, era impossível, da forma como então se fazia a distribuição, já ter números correctos de vendas e de sobras, nessa altura. Aquilo era, evidentemente, uma manobra provocada por uma raivinha do senhor Administrador. Este ainda voltaria à carga, exigindo que a verba da colaboração fosse reduzida para metade. O Stuart e eu, claro!, recusámos. Estava-se mesmo a ver que o "Picapau" fora condenado...
A confirmação foi-nos dada, primeiro, confidencialmente, por um grande amigo que, entretanto, fizéramos na casa: o Mota Cardoso, o secretário-geral, que nos revelou a tramóia que se preparava. Nós só faríamos a revista até ao nº 7 - e, entretanto, o nº 8 já estava a ser preparado por gente da casa, jornalistas de diversas publicações, que estavam a ser agrupados numa equipa que nem era de humoristas, mas que ficaria baratinha...
Aí, diga-se a verdade, fizemos novamente papel de anjinhos. Quando fomos convocados para receber a "sentença de morte", declarei, todo contente: "O senhor acaba com a revista, e tem esse direito, porque é quem a paga. Mas o número 8, que sabemos estar a ser feito às escondidas, não o pode publicar, porque o Proprietário não deixa! E, se tentar, pomos-lhe um processo!" O homem ficou banzado. É que o Proprietário, oficialmente, ainda era o Matos Maia, pois o advogado tinha-se esquecido completamente de elaborar o documento de transferência de propriedade para a ENP. Coitado, foi para a rua no dia seguinte!... Portanto, esse oitavo número da revista nunca saíu: foi passado pela guilhotina, para ser cortado ao meio e vendido como papel usado.
Foi assim que começaram e terminaram as aventuras do "Picapau". Pelo meio, entretanto, foram acontecendo alguns episódios pitorescos. Serão contados a seguir, se tiveram paciência para eles.
António Gomes de Almeida (a.g.almeida@clix.pt) no livro "HGÁ de Humor

Sem comentários: