A estatistica é como o Biquini :- o que mostra é sugestivo :- o que esconde é vital
17. ERA UMA CASA PORTUGUESA...

Enquanto durou a "Parada da Paródia", as minhas noites de segunda-feira eram passadas no Bairro Alto. Mas... nada de más interpretações! Embora o local, nessa época, fosse mais conhecido pela concentração de "casas de meninas" que o infestavam, havia, pelo menos, duas outras características que lhe davam especial interesse: era, igualmente, o bairro onde se encontravam muitas das casas de fados e guitarradas de Lisboa; e, também, a maioria das redacções de jornais, bem como as tipografias.
Uma destas, a "Casa Portuguesa", ficava na Rua das Gáveas, e nela se imprimia o "Diário Ilustrado" - e, na mesma rotativa, a "Parada da Paródia". Por isso é que eu "entrava de serviço" ao fim da tarde de segunda-feira, quando começavam a ficar prontas as provas de texto que era preciso rever, e lá ficava até o jornal estar pronto a entrar na máquina, o que tanto podia acontecer à meia noite como às duas da manhã, ou às quatro, como aconteceu muitas vezes. Este "horário de trabalho flexível" dependia da Censura. As provas eram enviadas à medida que estavam prontas e, durante aquele período de tempo, era um corropio, da tipografia para a Censura e da Censura para a tipografia, até estar tudo devidamente autorizado, com o carimbo oficial aplicado a todas as provas, de texto e de bonecos. Quando as coisas corriam bem, aquilo despachava-se depressa; quando os senhores censores embirravam com qualquer texto, ou qualquer imagem, era mais complicado. Então, a minha função era tornar a distribuir o material gráfico, repaginando o jornal inteiro e tapando os buracos que surgissem. Ia sempre prevenido com algumas gravuras soltas, que serviam para isso mesmo: para tapar os buracos que a Censura abria, inventando um texto mais ou menos apropriado que se ajustasse a cada boneco e mandando compor aquilo tudo, nos tipos e corpos convenientes. Era um trabalho de que eu até gostava, porque era um desafio à capacidade de imaginação e de "desenrascanço" que, nesses tempos, era um factor absolutamente indispensável a quem andava nestas vidas de jornais e jornalecos.
Isto significava várias horas seguidas em contacto com uma gente muito especial, que me habituei a admirar, a respeitar, e com quem sempre gostei de conviver: os gráficos. Enquanto esperava que viessem as provas da Censura, jantávamos juntos numa tasca à esquina da Travessa da Queimada. Enquanto se compunham as últimas legendas, estava eu ali ao lado, a indicar os tipos que preferia, a ler os textos às avessas, nas páginas já meio arrumadas, conversando com os compositores, com os impressores, com o chefe da oficina...
Deste, guardo uma lembrança pitoresca. Era o Miranda, um gordo bem disposto, que usava uma linguagem profissional curiosamente repetitiva, porque, dizia ele "esta malta, se a gente não explica tudo bem explicadinho, faz asneira". E então, para indicar a um jovem operador de composição como queria um título, dizia assim: "Olha que isso é tudo em versais, quer dizer, em caixa alta, portanto, tudo em letras maiúsculas, tás a ouvir? E é um título centrado, mas centrado mesmo ao meio, metade para cada lado, percebeste?"
Nunca cheguei a saber até que ponto isto era propositado, quer dizer, se ele falava desta forma por piada e se esta linguagem era, assim, deliberadamente tosca. Mas acho que sim, porque havia outros exemplos. Quando, um dia, refilei por causa de uma "gralha" que saíra num texto, o Miranda retrucou-me, calmamente: "Ora, não dê tanta importância a isso! Um jornal sem "gralhas" é como a Sofia Loren sem mamas: não tem piada nenhuma!"

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