sábado, março 04, 2017

"Goa pode dar à Índia o exemplo da tolerância, que no fundo é a matriz do próprio hinduísm

A estatistica é como o Biquini :- o que mostra é sugestivo :- o que esconde é vital


Almoço com Edgar Valles
Entramos e ouve-se música. "É a Lura", diz-me uma empregada, 
cabo-verdiana como a 
cantora que surge no ecrã gigante e que lá permanecerá 
as quase 
duas horas que o almoço com Edgar Valles durou. 
O presidente da
 Casa de Goa só tinha vindo aqui uma vez, mas 
gostou do ambiente
 e também da comida diversificada, quase tanto
 como as antigas 
colónias portuguesas que inspiram quem está 
na cozinha. Confesso-lhe
 que estranhei o nome Café de La Musique. Edgar,
 é assim que o
 trato e assim escreverei, não sabe porquê, mas
 promete logo indagar. 
Carlos Vasconcelos, o dono, chega, cumprimenta-nos
 e oferece a explicação:
 "Porque sou músico e porque vivi na Bélgica." Ora toma.
O Café de La Musique fica perto da antiga 
Feira Popular de Lisboa.
 E, de facto, só depois de se passar a porta do 
restaurante se começa 
a perceber que estamos em território da lusofonia, apesa
r do nome francês
. Há cartazes afixados com os músicos que hão de vir
 tocar nos 
próximos dias. 
"À noite a música é ao vivo", diz-me Edgar, já depois
 de sentados 
à mesa. O mote
 da conversa vai ser Goa, essa parcela da Índia tão especial 
na história de Portugal, mas também havemos de falar um
 pouco de Angola, que foi onde nasceu o
 meu convidado. Aliás, 
foi um prato angolano que ambos escolhemos, 
uma muamba de
 galinha que Edgar me propõe dividir "porque 
as doses são grandes". 
Para entrada, "um caldo-verde", pede ele, e eu alinho.
 A sopa é agradável,
 mesmo que, quando me a põem à frente, me
 pareça mais um 
creme de legumes.
Comecemos então pela apresentação do homem que 
desde 2014 preside
 à Casa de Goa, sucedendo a um outro goês famoso, 
o antigo deputado 
Narana Coissoró, um hindu democrata-cristão.
 Edgar Francisco Valles
 (e já perceberão porque ponho aqui o Francisco), 
por seu lado,
 é o típico português católico com raízes goesas, filho de um 
funcionário público que trabalhou em várias partes do império
 colonial porque queria abrir horizontes. "Nasci em 
1953, no Bié, 
na então Silva Porto", conta o mais novo de três filhos do 
engenheiro agrónomo também chamado Edgar Valles, 
natural de Pangim,
 capital de Goa, e de Lúcia, senhora também goesa, mas de
 Vasco da Gama.
"O meu pai formou-se na Universidade de Pune, 
na Índia, e depois 
é que veio um ano para Lisboa para tirar a equivalência. 
O meu avô
 recusou-se a pagar-lhe os estudos em Portugal porque
 tinha receio
 de que ele voltasse casado com uma europeia. Queria 
que o casamento
 fosse com uma goesa", conta Edgar. "Era assim que 
costumava ser, 
por tradição, mas se ele tivesse casado com uma europeia,
 alguém de Lisboa,
 também acabaria por ser aceite na família", acrescenta.
 O próprio
 Edgar Francisco, o da conversa, acabou por casar com
 uma europeia, 
Ana Simões, mãe dos seus dois filhos, que conheceu quando 
veio para Lisboa.
Nascido e criado em Angola, passou a adolescência 
em Luanda
, onde o pai acabaria colocado, depois de ter
 trabalhado em várias
 cidades ("por isso os meus irmãos nasceram 
em Cabinda"). Vivia-se
 a guerra, com o MPLA, a UNITA e a FNLA
 a combaterem o 
exército português, com vistas à independência
 da maior das 
colónias africanas. "Para mim, a guerra ficava
 longe. Não a 
sentíamos", diz. Em 1970 troca Luanda por
 Lisboa, para estudar 
na Faculdade de Direito.
Chega a muamba, servida num tachinho que deixam na mesa. 
Como acompanhamento, funje, que é feito de farinha de
 mandioca.
 Casa tudo muito bem, o prato de galinha com o funje, mas Edgar
 pede piripiri. Depois, tira uma colher pequenina e coloca-a na
 borda do prato. Pergunto porque não a mistura. "Não sei a
 força do picante.
 Assim, aos poucos, não me arrisco a estragar", responde
 com a
 sensatez de quem já passou dos 60 anos e viu muito.
Voltamos ao tema Angola, ideal enquanto despachamos
 a muamba,
 e fico a saber que regressou uma primeira vez em 1973,
 para o casamento 
do irmão Edgar Ademar. Depois da independência, 
voltou em 1976
 para dar aulas. Era cidadão português mas pediu
 para ser militante 
do MPLA. Não foi aceite porque havia uma nova
 regra, explica, que 
vetava a militância a quem pertencia a partidos estrangeiros 
e Edgar era 
do PCP, tendo integrado a UEC, a União dos
 Estudantes Comunistas.
 No Natal veio a Lisboa e a mulher não quis que regressasse. 
"Ela teve o pressentimento de que ia haver um banho de sangue
 em Angola", relembra Edgar. Foi no maio seguinte, 
num choque 
entre os partidários do presidente Agostinho Neto e
 uma ala liderada
 por Nito Alves. Os irmãos, ambos com protagonismo 
no MPLA, 
acabaram mortos. Ela chamava-se Sita Valles e o bebé que tinha 
(com o marido José, também morto) foi entregue aos cuidados de 
uma tia que vivia em Portugal, Francisca van Dunem, atual ministra
 da Justiça. "O meu sobrinho João Ernesto, a quem chamamos Che, 
dá hoje aulas de Economia em Angola."
Edgar fala com naturalidade desse episódio dramático na história 
da família. Só se sente mais sensível quando lhe pedem fotografias. 
"Aí é diferente", diz, "começamos a relembrar-nos das pessoas".
Nisto de restaurante lusófono, vinhos portugueses fazem todo o sentido. 
Pedimos tinto, um alentejano, Marquês de Borba. Mas a garrafa 
é das grandes e ambos concordamos em substituir antes o vinho
 por duas imperiais. E de Angola passamos para o tema Goa,
 terra dos antepassados, mas também uma terra que teve
 de redescobrir.
"Creio que aquilo que se passou em Angola me afetou tanto que fiz 
uma espécie
 de transferência de afeto para Goa", reflete, enquanto me reforça 
a dose de galinha que já tenho no prato, enche também o seu,
 e pega com delicadeza na colherzinha de piripiri e 
deita-a na muamba.
 "Está muito bom. Já da outra vez tinha ficado muito satisfeito
 com a comida", comenta.
Conversamos sobre Goa, que digo já ter visitado e ter ficado
 impressionado com tantas igrejas no meio da vegetação 
tropical e com os nomes portugueses por todo o lado, desde
 as tabuletas das lojas aos obituários nos jornais. "Hoje já pouca
 gente fala português. Só os mais velhos. E a indianização é
 muito forte. Vou lá muitas vezes, pois tenho propriedades que
 sou obrigado a administrar", diz. Tem ainda primos no território
 que foi o estado da Índia, peça-chave do império português 
no Oriente e bastião do catolicismo na Ásia.
"Goa foi um caso muito especial na história de Portugal. 
Os portugueses não trataram os goeses como colonizados 
mas como iguais. Logo no século XVI houve as conversões, com 
as famílias a ficarem com o nome do padre ou de algum nobre", 
conta, sobre um território conquistado em 1511 por Afonso de 
Albuquerque e que só em 1961 deixou de ser português, quando 
a Índia se cansou da resistência de Salazar e anexou pela força 
a colónia portuguesa, que na época talvez tivesse 50% de católicos,
 gente chamada Mascarenhas, Noronha, Fernandes ... ou Valles.
O direito de propriedade foi, porém, respeitado pela Índia e mesmo 
quem optou pela nacionalidade portuguesa manteve casas e terras. 
Por isso Edgar vai lá umas três vezes por ano para cuidar do que
 é seu e que um dia será dos dois filhos, Edgar Luís (outro Edgar!)
 e Francisco. O primeiro é vereador da Cultura em Odivelas, 
o segundo é capitão da Força Aérea. "Também já tenho 
três netos, dois rapazes
 e uma rapariga", acrescenta Edgar. E conta-me que foi a
 primeira vez a 
Goa com 3 anos, "para ser mostrado aos meus avós". Não terá
 grande memória dessa visita, que acabaria por ser a única à
 Goa ainda portuguesa.
Edgar pede à empregada se é possível baixar um pouco o
 volume da música, para ser mais fácil a conversa. Ao resto
 da clientela a voz quente de Lura não parece incomodar.
 Bem, a nós também não, até porque, ao segundo pedido 
sem resposta, desistimos e falamos como dá. Chega, isso sim,
 a ementa com as sobremesas. Edgar queixa-se da diabetes e
 pede papaia, eu escolho uma especialidade cabo--verdiana -
 doce de papaia 
com queijo de cabra.
Edgar convida-me para assim que acabarem as obras 
no restaurante da 
Casa de Goa, perto do Palácio das Necessidades, lá ir
 experimentar 
a comida. Sei que é uma mistura de influências 
portuguesas e indianas,
 como o próprio estado, hoje o mais rico da Índia e também,
 de certa forma, 
o mais liberal. "Nas praias do resto da Índia as mulheres entram 
na água vestidas com os saris, mas em Goa usam 
fato de banho. 
Dos tradicionais, mas fato de banho", sublinha o 
presidente da Casa de Goa.
 A instituição conta com 600 sócios
 e está aberta mesmo a quem não tem raízes na Índia 
mas que se interesse 
pela cultura goesa, explica-me este advogado, com vária 
obra jurídica publicada 
(e também alguns livros antigos mais políticos), que chegou a ser
 jornalista no semanário
 Extra, em que estiveram nomes que mais tarde eu próprio vim 
a conhecer no DN,
 como José David Lopes e Mário Ventura. Também
 José Saramago, 
que tinha sido diretor adjunto do DN, fazia parte da equipa, 
composta sobretudo por gente saneada do jornal nos tempos 
complicados do pós-25 de Abril. Foi nessa altura, 
que coincidiu
 com a morte dos irmãos, que Edgar romperia com o PCP, 
porque
 não gostou da forma "como o Avante! tratou do que se
 passou em Angola".
Acrescenta que em 1993, convidado por João Soares, 
seu amigo,
 aderiu ao PS, mas nunca quis cargos. Até hoje é 
militante de base.
 Conheceu mais ou menos na mesma época 
António Costa,
 pois Ana Simões foi a número dois da candidatura falhada
 do atual primeiro--ministro à Câmara de Loures. 
Edgar morava 
e mora em Odivelas, agora também um concelho.
Por falar em Costa, e enquanto não chegam
 os cafés, 
o que pensa Edgar da recente visita do
 político português
 filho de um goês à Índia? "Para os indianos,
 António Costa
 é um exemplo da sua superioridade intelectual,
 pois
 se até um deles consegue ser primeiro-ministro 
na Europa
", comenta. Mas entenda-se como se entender 
a admiração
 da Índia pelo nosso primeiro-ministro, "a verdade
 é que
 Costa
 e o primeiro-ministro Narendra Modi se
 entenderam
 muito bem e isso é bom para os dois países
 e, claro, 
para Goa", acrescenta. "A Índia vai ser 
uma grande 
potência económica, está a desenvolver-se
 rapidamente,
e isto sem deixar
 de ser uma democracia", sublinha Edgar,
 relembrando que
 o país tem 1250 milhões de habitantes e uma
 grande diversidade,
 mas que mesmo assim "o exército nunca teve
 de se envolver 
em política como acontece no Paquistão". 
E quando pensa
 em Goa, pensa em como esta, embora pequena,
 pode ajudar
 a Índia. "Goa pode dar à Índia o exemplo da
 tolerância, 
que no fundo é a matriz do próprio hinduísmo."
Chega a conta. Antes de nos despedirmos,
 fico a saber 
que o advogado não deixou totalmente 
de ser jornalista.
 "Escrevo sobre Portugal para dois 
jornais indianos,
 o The Goan, em inglês, e o Lokmat, 
que traduz os
 artigos para a língua marati." Edgar também 
confessa estar 
"encantado com a atual embaixadora indiana 
em Lisboa,
 Nandini Singla, uma mulher inteligente que 
está a ajudar
 muito as relações entre Portugal e a Índia e 
que compreende
 o valor da comunidade goesa". Afinal, 
António Costa pode ser o português com
 raízes goesas
 com maior 
protagonismo, mas a comunidade com
 origens indianas,
 não só de Goa
 mas também do Gujarate, está bem integrada
 num país 
que há séculos se habituou a conviver
 com outras culturas.
No ecrã, ao fundo da sala do Café de La Musique,
 Lura continua a cantar. Agora é Só Um Cartinha.
Café de La Musique
› Couvert
› 2 sopas
› 1 muamba de galinha
› 2 imperiais
› 1 garrafa de água
› 1 papaia fatiada
› 1 doce de papaia com queijo de cabra
› 2 cafés
Total: 42,50 euros

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